CRIME SEM CASTIGO

O flagelo da violência doméstica na Rússia

Agentes da polícia e do Judiciário consideram as agressões ‘assuntos de família’ (Foto: Human Rights Watch)

A violência doméstica sempre foi um problema persistente na Rússia. Porém, os casos de agressão vêm aumentando após um projeto de lei aprovado pelo parlamento descriminalizar agressores primários.

Aprovada em fevereiro do ano passado, a lei é de autoria de Yelena Mizulina, uma parlamentar ultraconservadora que também esteve por trás da controversa lei que tornou crime tudo aquilo que for considerado propaganda gay no país – leia-se, qualquer menção à homossexualidade.

De extrema controversa, a lei determina que um homem que tenha agredido algum membro da família pela primeira vez – ou não tenha sido acusado do ato por um período de um ano – é punido com multa, sem ser fichado ou detido por isso. Na prática, o crime foi reduzido ao patamar de estacionar em local proibido.

Desde 2016, quando a proposta começou a ser debatida, Mizulina esteve envolta em um rol de declarações que despertaram a fúria de defensores dos direitos humanos e das liberdades civis. Ela disse no parlamento que “nas famílias tradicionais da Rússia, a relação entre pais e filhos é calcada em autoridade e poder”. Ela também disse ser ridículo que pessoas sejam fichadas criminalmente “por um tapa”.

Em um país onde as liberdades civis e de expressão são rigidamente restritas – vide o caso da banda Pussy Riot, cujas integrantes foram presas por conta da apresentação de uma música contra Vladimir Putin – parte da sociedade apoia a nova legislação, por considerar que o que acontece em família fica em família.

No entanto, críticos e ativistas se empenham em apontar como a lei deu sinal verde para a agressão familiar, que afeta em especial as mulheres, e como o Estado deveria agir para impedir esse tipo de violência, com ferramentas de proteção como, por exemplo, ordens de restrição.

Uma dessas ativistas é a russa Yulia Gorbunova, pesquisadora da divisão da Human Rights Watch para a Europa e Ásia Central. Em um relatório divulgado na última quinta-feira, 25, ela denuncia casos de agressão contra mulheres por seus parceiros, uma violência que em muitos casos também se estende aos filhos do casal.

Intitulado “Eu poderia te matar e ninguém me impediria”, o relatório choca já no início ao expor como as vítimas da violência doméstica são tratadas com descaso por agentes da polícia e do Judiciário. Gorbunova usa como exemplo a história de Liza, uma professora de jardim de infância de 33 anos, moradora de Pskov, no noroeste da Rússia, e mãe de uma criança de cinco anos.

“Ele me empurrou. Eu caí no chão e ele me deu um soco no estômago. Ele disse que seu sonho era conhecer uma garota pura, e que eu era uma decepção, impura. Ele começou a me manter acordada todas as noites, me forçando ‘a dizer a verdade’ sobre homens com quem me relacionei antes dele. Comecei a acreditar que eu não era boa”, conta Liza.

Liza passou a andar com um roupão grosso em casa, para que as agressões doessem menos. As agressões continuaram por anos: em uma delas, Liza teve uma faca enfiada sob as unhas, foi agredida com um banco de madeira e cinta. Tudo na presença do filho de cinco anos. Então, seu parceiro puxou sua cabeça para cima e urinou em seu rosto. Neste momento, a criança implorou chorando: “Por favor, mamãe, diz logo a verdade”.

Durante todo esse período, Liza buscou ajuda e contatou a polícia diversas vezes. Mas os agentes se recusavam a tomar seu depoimento, afirmando se tratar de “assunto de família” – o mesmo entendimento que tiveram os parlamentares que descriminalizaram a violência doméstica em 2017, por considerar que esforços para punir agressores são uma interferência às famílias russas e um ataque aos valores tradicionais.

O cenário futuro para essas mulheres e crianças é sombrio. Desde a descriminalização, casos de violência, como o de Liza, vêm aumentando no país, como apontou, em entrevista à rede Al Jazeera, Ekaterina Khodzhaeva, PhD em sociologia e pesquisadora do Instituto Internacional para a Justiça e o Estado de Direito. “A completa descriminalização da agressão ocorreu na primavera de 2017 e, curiosamente, os casos de violência tornaram-se mais prevalentes”, disse a pesquisadora.

A reportagem da Al Jazeera também cita um caso de agressão familiar, vivido por Alyona Zolototrubova. Mãe de quatro filhos, ela viveu por mais de dez anos com um marido que descreve como “sádico”. No início, do casamento tudo ia bem, mas as coisas mudaram pouco tempo depois. O marido começou a se mostra extremamente controlador e a afastar Alyona de parentes e amigos. Ela estava totalmente isolada socialmente quando as agressões tiveram início. “Ele dizia que a culpa era minha, e eu acreditava”, diz Alyona.

Logo, elas se estenderam para seus quatro filhos. Alyona conseguiu fugir e obteve abrigo no Kitezh Crisis Centre, um centro para proteção de mulheres. Ela diz que planejou a fuga, juntando cada centavo que conseguia, e que explicou a cada um dos filhos, separadamente, o motivo pelo qual estavam fugindo. Eles concordaram com alegria.

Porém, nem todas as mulheres conseguem escapar da violência e muitas têm a renda controlada pelos parceiros. Diante disso, Yulia Gorbunova aponta medidas que podem ser tomadas para mudar esse cenário.

“A Rússia precisa adotar uma lei para a violência doméstica, tornando um crime a ser investigado e processado pelo Estado. Deve haver ordens de proteção. A polícia deve ser treinada para responder efetivamente aos relatos de violência doméstica. O Estado deve assegurar que as mulheres que enfrentam a violência doméstica tenham acesso efetivo aos serviços de apoio, incluindo abrigos de emergência. Sobreviventes de violência doméstica na Rússia são basicamente deixados sozinhos. O Estado não os protege e isso não os ajuda na escala necessária. Isso precisa mudar”, diz Yulia Gorbunova.rede Al Jazeera

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