CASAMENTOS INFANTIS

A esperança na anulação de casamentos infantis na Índia

Os jovens na Índia têm direito a pedir anulação do casamento dois anos depois da maioridade (Foto: PxHere)

A violência doméstica começou dias depois que ela se mudou para a casa do marido. O marido chegava em casa bêbado e a obrigava a ter relações sexuais. As mulheres da família dele a insultavam e diziam que trouxera má sorte. Pinki Kumari tinha apenas 16 anos, mas seu destino havia sido decidido aos 4 anos, quando seus pais a casaram com um menino 10 anos mais velho na Índia.

Quando foi morar na casa do marido há mais de um ano, a adolescente tímida que raramente levantava a voz acima de um sussurro começou a implorar ao pai que a deixasse voltar para casa. Ele recusou, com medo da represália de seus sogros, ou de desafiar os costumes conservadores do vilarejo onde viviam no estado de Rajasthan, que tem uma das maiores taxas de casamento infantil do mundo.

Então, ela ligou para um telefone que lhe haviam dado. A voz que respondeu à ligação era calorosa, como a de uma irmã mais velha, mas firme. Kriti Bharti já havia respondido a centenas de ligações como essa e sabia o que perguntar: ela teria como provar sua idade? Ela poderia provar que o casamento acontecera? Por fim, disse “não se preocupe, vamos resolver seu problema”.

Uma das ativistas mais bem-sucedidas da Índia em sua luta contra o casamento infantil, Bharti tem um escritório onde atende telefonemas de jovens casais menores de idade em Jodhpur, além de divulgar seu trabalho em artigos de jornais. Em vez de só denunciar os casamentos ilegais, ela recorre aos tribunais para anulá-los.

Em 2012, Bharti obteve a primeira anulação de um casamento celebrado no Rajasthan entre duas crianças, um menino de 3 anos e uma menina de 1 ano. Segundo o costume nessas comunidades conservadoras indianas, após o casamento as meninas só vão morar com a família do marido e consumar a união na adolescência.

“O casamento infantil é como uma doença. É importante evitá-la, mas quando contamina muitas pessoas, é preciso encontrar uma maneira de curá-las”, disse Bharti, hoje com 30 anos, em seu escritório, um apartamento no segundo andar de um prédio em Jodhpur, com as paredes cobertas de recortes de jornais e fotos de seus clientes.

De acordo com dados da Unicef, das cerca de 700 milhões de mulheres no mundo inteiro, um terço se casa antes dos 18 anos na Índia. Uma pesquisa nacional sobre saúde realizada no período de 2015 a 2016 revelou que mais de um quarto das mulheres indianas com idades entre 20 e 24 anos haviam se casado antes de completar 18 anos.

Apesar das leis que proíbem o casamento infantil e a crescente conscientização que essas uniões contribuem para o aumento do abuso sexual, da gravidez de risco, da pobreza e da redução das taxas de escolaridade, a antiga visão das meninas como bens móveis persiste entre os indianos conservadores.

Segundo a legislação indiana, os jovens têm direito a pedir a anulação do casamento dois anos depois de atingirem a maioridade, definida como 18 anos para meninas e 21 anos para meninos. A cláusula faz parte de uma lei aprovada em 2006 que prevê a prisão e o pagamento de uma multa de US$ 1.500 para pessoas envolvidas na preparação e celebração de casamentos entre crianças, porém ela não invalida automaticamente esses casamentos.

Em 2011, Bharti fundou a ONG Saarthi Trust, onde ensina as crianças a reivindicar seus direitos básicos na sociedade indiana.

Em sua luta para combater o casamento infantil, Bharti começou a visitar as aldeias do Rajasthan, muitas vezes acompanhada de jovens que haviam anulado seus casamentos, à procura de meninas que queriam contestar seus vínculos conjugais nos tribunais.

Em 2015, depois de fazer uma palestra em Rabariyawas a 113 km a leste de Jodhpur, Bharti foi abordada por Mamta Bishnoi, uma jovem de 18 anos, membro de uma seita indiana ultraconservadora. Bishnoi contou que após a morte de sua bisavó, ela e a irmã, na época com 8 anos e 10 meses, respectivamente, haviam se casado.

Mas só soube que tinha se casado alguns anos depois, quando a levaram à casa da família do marido durante uma festa religiosa. Ele era mais velho, não concluíra os estudos e tinha fama de bêbado.

“O casamento representou uma sentença de morte para mim”, disse Bishnoi em uma entrevista no escritório de Bharti. Um tribunal concedeu a anulação do casamento da irmã em três dias. Porém, o marido de Bishnoi recusou-se a cooperar e a ação judicial prolongou-se por dois anos. Por fim, o casamento foi anulado em abril deste ano, apesar das ameaças dos sogros de persegui-la se tentasse se casar de novo.

Em junho do ano passado, Bharti visitou uma escola em Mathania, uma cidade ao norte de Jodhpur. Ao entrar em uma grande sala de aula, viu cerca de 100 jovens sentados no chão, homens de um lado e mulheres do outro. Bharti perguntou se alguém havia presenciado um casamento infantil. Mais da metade levantou as mãos.

Em seguida, Bharti ouviu o relato de Pinki Kanwar, uma jovem de 19 anos que se casara aos 10 anos com um desconhecido. O casamento foi anulado em fevereiro e Kanwar está estudando para ser professora.

Depois, Pinki Kumari se levantou. Nunca havia falado para um público tão grande e suas mãos tremiam ao segurar o microfone para contar a história de um casamento imposto e infeliz.

Após falar por telefone com Bharti diversas vezes, Kumari aproveitou a ausência dos sogros para sair de casa decidida a não voltar. Quando o pai, preocupado, perguntou onde moraria, Kumari disse que iria morar com Bharti, a quem chama de “didi”, o que significa irmã.

Este ano, ela se mudou para uma casa mantida pela ONG Saarthi em Jodhpur e está cursando comunicação em uma faculdade local. A anulação de seu casamento deve ser concedida dentro de alguns meses, disse Bharti.

Ao se despedir dos jovens na escola em Mathania, Bharti falou seu número de telefone em voz alta. Na estrada de retorno a Jodhpur, ela recebeu uma ligação. “Engano, desculpe”, disse uma voz. Bharti sorriu. “Alguém está conferindo o número do telefone. Quando se sentirem mais confiantes ligarão de novo”.Los Angeles Times

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